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Inconstitucionalidade da Legítima Defesa à Honra

No dia 26 de fevereiro, o ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli concedeu parcialmente a medida cautelar da ADPF 779 entendendo que a tese de legítima defesa da honra contraria princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero.

No dia 12 de março, em sessão virtual e por unanimidade, os outros ministros do Supremo referendaram a liminar. Com essa decisão, nós advogados não poderemos mais sustentar, direta ou indiretamente, a tese de legítima defesa da honra nas fases pré-processual, processual penal e perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento.

Com base nessa decisão do STF, seguem alguns esclarecimentos sobre o tema:

1)Como e quando surgiu a tese da “legítima defesa da honra”?

Na nossa Constituição Carolina de 1532  já era admitida a legítima defesa quando o fato ofendesse à integridade física ou à honra. Depois, em 1940 com a promulgação do nosso código penal a excludente de “perturbação dos sentidos e da inteligência” deixou de existir, sendo substituído pelo homicídio privilegiado, vez que entendia que a emoção e a paixão, não impediam a punição do delinquente, mas apenas serviriam para minorar a pena.

Com as alterações trazidas pelo Código, surgiu a tese de legítima defesa da honra e da dignidade, os criminalistas da época usavam muito essa tese no tribunal do júri como defesa nos crimes passionais, tese esta aceita sem receio pelos jurados, eles entendiam ser aplicável porque a excludente da “perturbação dos sentidos e da inteligência”, uma vez suprimida pelo legislador de 1940 tentou alterar a formação social e psicológica dos homens (homem/mulher) através da nova letra de lei.

A tese entendia que a infidelidade de um dos cônjuges afrontava os direitos do outro e era um insulto à sua honra e moral.

A criação desta tese teve como base os preconceitos que sempre existiram no nosso país em relação a mulher, acreditavam que ao cometer aquele crime, o sujeito queria apenas defender a sua honra, e por isso, esse crime não deveria ser punido, afinal, apenas teria agido para se defender, e foi assim, com base nesta tese que diversas violências contra a mulher aconteceram e foram permitidas na nossa sociedade.

2)Qual o maior impacto dessa decisão do STF (de tornar inconstitucional o argumento de “legítima defesa da honra”) na sociedade?

Esse com certeza é um grande passo em direção à igualdade de gênero e uma grande vitória para as mulheres em relação à justiça. Como mulheres, temos na nossa história  uma luta muito grande contra uma sociedade machista e sexista. Como essa decisão é universal e tem alcance em todas as instâncias judiciais, a partir de agora os juristas não mais poderão usar dessa nefasta tese jurídica para desmerecer a vida de mulheres brasileiras.

O Ministro Dias Toffoli muito corretamente determinou por meio de uma liminar a anulação de qualquer julgamento em que seja levantada a tese de legítima defesa à honra.

3)Por que demorou tanto para o Supremo chegar a essa decisão?

A resposta está na cultura. Nessa cultura machista e patriarcal brasileira, onde carregamos essa crença de que o homem é superior à mulher, adotando padrões de conduta específicos para ambos.

Sofremos muito preconceito pelo simples fato de ser mulher.

E questões como essa não pareciam até pouco tempo ter muita importância, mas cada vez mais nós mulheres estamos conquistando uma posição de poder se impor, de poder falar, de poder ocupar grandes cargos, de poder ser forte e lutar a favor do feminismo, de lutar pela lei maria da penha e depois por uma lei chamada feminicídio, nós estamos cada dia mais mais conquistando o nosso espaço e com isso essas questões vão se levantando e se tornando cada vez mais necessárias, até que chegou o momento desse decisivo enfrentamento da cultura machista.

4)A curto e longo prazos, quais os efeitos dessa medida na Justiça brasileira e na vida de cada mulher?

A proteção da mulher em situação de violência doméstica e familiar tem que se dar de maneira antecedente, antes que o crime ocorra, para que possamos efetivamente se precaver e se prevenir.

Os feminicídios não acontecem ao acaso, não é de repente, ele é anunciado, pelas ações de dominação, isolamento, agressões, violações e retiradas de direitos, diariamente.

É assim que o feminicídio é afirmado, anunciado.

Essas mortes podem ser evitadas porque há uma série de violências que são constituintes e antecedentes a ela.

O feminicídio é a ponta do iceberg, é a consequência. 

Então, temos que ter um olhar muito mais cuidadoso para o que veio antes.

A partir do momento que passamos a dar mais garantias e menos culpa às mulheres elas passam a se ver como solução do problema e não a causa. As mulheres passam a se sentir mais amparadas, mais seguras juridicamente.

5)Mesmo com a decisão do STF, há chances de a “legítima defesa da honra” continuar sendo usada?

A tese não pode mais ser usada como argumento para justificar feminicídios em ações criminais.

A partir desse momento está vetado o uso da tese da legítima defesa da honra nas fases pré-processual ou processual penal, bem como no julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento.

A tese jurídica de legítima defesa da honra não tem amparo legal.

Ela foi construída por meio de julgamentos nos tribunais e firmou-se como forma de adequar práticas de violência e morte nos assassinatos praticados por homens contra mulheres tidas por adúlteras ou com comportamento que fugisse ou destoasse do desejado pelo matador.

Se essa tese for aplicada em qualquer processo, a Justiça pode anular a decisão do júri, criado para julgar crimes intencionais contra a vida, como feminicídio e homicídio.

Mas essa tese ainda poderia ser usada como defesa em outros tipos de crimes, que não passionais. Crimes contra à honra por exemplo. Mas a dificuldade de ser aceita seria muito grande.

6)Um exemplo de caso, em que a legítima defesa da honra  foi usada, é o de Ângela Diniz. Qual o legado do assassinato dela, e da absolvição do namorado Doca Street, no cenário jurídico? E na sociedade?

O caso da Angela foi muito chocante, ela foi morta a tiros pelo seu namorado que era muito ciumento e quando ela terminou com ele, para que ela não ficasse com mais ninguém, ele deu 4 disparos nela até que ela morresse.

Doca Street que era o seu namorado foi condenado a dois anos de cadeia, mas obteve o direito de cumprir a pena em liberdade, pois teve direito ao sursi.

A tese utilizada pela defesa era de que ele teria agido em legítima defesa da honra e “matado por amor”. Enquanto isso, Doca foi descrito como um homem bom que fora enfeitiçado por uma “mulher fatal” que o seduziu e o desvirtuou, que fez por merecer seu infeliz fim.

A morte de Ângela Diniz causou uma enorme comoção nos movimentos contra a violência doméstica, onde fora ressaltado o descaso que o crime teve.

Para se ter ideia da força do caso, foi iniciada a campanha que tinha o slogan “Quem ama não mata”.

Os episódios resultaram numa grande pressão para que um novo julgamento fosse feito e o ex-companheiro pagasse pelo crime.

Hoje, com certeza essa tese [da defesa da honra] já não será mais difundida.

7)Para uma medida funcionar, é preciso fiscalizar. Nesse caso, como isso pode ser feito pelo poder público?

Nesse caso a fiscalização se daria pela própria justiça no julgamento dos próximos processos ou anulação do caso que tiver como argumento defensivo a tese de legítima defesa da honra.

Não se admitindo mais a impunidade de quem decide cometer crimes como forma de vingança, ódio ou egoísmo.

 

Artigo escrito por: Sara Figueiredo Rocha, Advogada Criminalista Pós Graduada em Direito Penal e Processo Penal, fundadora da Fonte Jurídica, Professora de Direito Penal, Palestrante e Escritora (@dra.sararocha)